segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

A governança do Banco Central (IV)



1) as estruturas do sistema de governança do Banco Central do Brasil, com base na Lei Complementar 179 de 24/2/2021e em informações do site do Banco;

2) seu relacionamento com o Conselho Monetário Nacional (CMN) e suas competências, com base na Lei 4.595 de 31/12/1964; e,

3) objetivos, autonomia e metas de política monetária do Banco, com base na LC 179/2021, supracitada.

Neste artigo, comentamos, brevemente, as recentes discussões sobre a taxa Selic, que envolveram, de um lado, o Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva e, de outro, o atual Presidente do Banco Central do Brasil, Roberto Campos Neto. Tal polêmica conduz a reflexões sobre a governança do Banco e, em um nível mais alto, a governança do Brasil.

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VISÃO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA 
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O Presidente Lula da Silva fez críticas recentes em relação à taxa de juros Selic, estabelecida pelo Banco Central, por meio do Comitê de Política Monetária (Copom). A taxa foi mantida no patamar de 13,75% ao ano, conforme figura seguinte: 


Notas:

1) Datas indicadas: reuniões do Copom, desde 12/12/2018, sendo negritadas aquelas em que taxa Selic se manteve inalterada.

2) Registraram-se variações significativas na taxa Selic, especialmente de 20/1//2021 até o presente momento.


Na figura anterior, a Selic foi estabelecida em 13,75% ao ano na reunião do Copom de 3 de agosto de 2022, tendo sido mantida nesse patamar na reunião  de 1 de fevereiro de 2023 do Comitê, primeira no Governo Lula da Silva. Na visão do presidente da República, tal nível de taxa inviabiliza o crescimento da economia brasileira. Importante: o valor de 13,75% ao ano inclui a inflação; sem o feito inflacionário, isto é, em termos reais, a taxa Selic seria da ordem de 8% ao ano.

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VISÃO DO PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL
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A polêmica acima mencionada resultou em entrevista do atual presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, ao programa Roda Viva, que pode ser vista no vídeo seguinte:



Programa Roda Viva, entrevista realizada em 13/2/2023.


Na entrevista, Campos Neto apresenta sua visão sobre o estabelecimento da taxa Selic no patamar em que esta se encontra. Argumenta principalmente que: 1) o Banco Central tem atuado com os instrumentos de que dispõe no presente; 2)  os juros no Brasil são determinados pelas expectativas de agentes do mercado financeiro quanto à economia; e, 3) as expectativas de juros de longo prazo são observadas pelo Banco.

O Presidente do Banco Central se mostra, nessa entrevista, aberto a discutir as causas profundas dos juros altos no Brasil, sinalizando disposição ao diálogo, o que é muito relevante, já que o Banco deve perseguir as metas monetárias estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), conforme dispõe o art. 2o da Lei Complementar 179/2021. Integrado atualmente pelos ministros da Fazenda e do Planejamento, respectivamente Fernando Haddad e Simone Tebet, bem como por Roberto Campos Neto, o CMN é presidido por Haddad e terá o poder de repensar a política monetária nacional e seus impactos. 

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VISÕES DE ESPECIALISTAS
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Macroeconomistas e profissionais respeitados do mercado financeiro se manifestaram sobre o assunto. Abaixo, reproduzem-se as entrevistas com os macroeconomistas André Lara Resende, ao programa Canal Livre, e Mônica de Bolle, ao portal UOL:


 
Canal Livre, 12/2/2023. 
Entrevista anterior à do Presidente do Banco Central no Roda Viva.



Portal UOL, 14/2/2023. 
Entrevista posterior à do Presidente do Banco Central no Roda Viva.


Em suas entrevistas, Lara Resende e De Bolle se mostram críticos assertivos da política monetária do Banco Central, destacando-se aqui os seguintes argumentos, resumidamente:

1) A taxa Selic no patamar de 13,75% ao ano (a mais elevada das economias capitalistas do Planeta), não tem como combater a inflação brasileira neste momento, pois sua eficácia tem limite. 

2) A causa da atual inflação nacional e da inflação de muitos países não é o excesso de demanda dos mercados consumidores (muitos agentes fazendo muitas compras e inflacionando preços), mas fatores como a pandemia Covid e a guerra Rússia-Ucrânia entre outros. Não há, no momento, inflação de demanda no Brasil e mesmo em países com crescimento da inflação decorrente dos dois fatores citados.

3) Referência para a economia brasileira, a taxa Selic, no patamar em que se encontra, inviabiliza investimentos e o crescimento  do País. 

Em sua entrevista, André Lara Resende critica a noção de que aumentar os juros beneficia o front fiscal, argumentando que o aumento dos juros tem - ao contrário - ampliado os gastos do Brasil para pagar proventos financeiros a rentistas (seu comentário não critica o chamado rentismo, que ele entende como algo inerente a economias capitalistas). Lara Resende também enfatiza a necessidade de investimentos pelo Brasil, para enfrentar sua grande desigualdade social. Observa que o País tem recursos próprios para financiar esses investimentos, via Estado (com destaque para o BNDES) e iniciativa privada. E aponta as possibilidades de instituições financeiras externas (não aquelas privadas, com juros mais altos) contribuírem para o financiamento de projetos socioambientais, especialmente com foco na Amazônia.

Mônica De Bolle observa, por seu turno, que o Presidente do Banco Central, em sua entrevista ao Roda Viva, não consegue justificar a contento a taxa Selic no patamar em que esta se encontra, mencionando que o Brasil ainda não tem sua curva de taxas de juros de longo prazo, a exemplo dos EUA (os títulos nacionais de prazo mais longo teriam pouca liquidez). De Bolle ainda observa que há evolução relevante no processo de estabelecimento de taxas de juros, mencionando os EUA, onde se procura conhecer as expectativas de mais agentes, não apenas aqueles dos mercados financeiros. Ambos, Lara Resende e De Bolle, tecem outras considerações tão relevantes sobre economia e políticas econômicas que estas mereceriam, per se, um artigo à parte.

Também é interessante considerar o que afirmaram alguns especialistas que atuam profissionalmente nos mercados financeiros. No dia 15 de fevereiro, após a entrevista de Roberto Campos Neto ao Roda Viva, Luís Stuhlberger (Verde Asset), Rogério Xavier (SPX Capital) e André Jakurski (JGP), gestores de grandes portfólios de investimentos, em seminário do BTG Pactual, sustentaram que a meta de inflação perseguida pelo Banco Central, via taxa de juros, é inatingível em nosso País (a meta atual é de 3,25% ao ano, podendo variar 1,5% acima e abaixo desse valor, o que conduz à faixa de 1,75% a 4,75% ao ano). 

Adicionalmente, Luiz Carlos Trabuco, presidente do Conselho de Administração do Bradesco, afirmou, no dia 16 de fevereiro: "Hoje, percebemos que o debate sobre os juros necessários para combater a inflação está permeado de ponderações sobre atividade econômica e emprego. É justo e correto dar mais complexidade ao tema da política monetária".

Conforme se percebe, a partir de todas as visões acima brevemente apresentadas, as discussões sobre a política monetária nacional e o processo por meio do qual tal política é criada e implementada merecem reflexão profunda, além de ações para  melhorá-la e torná-la mais eficaz, favorecendo o Brasil.

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EFEITO SELIC NOS INVESTIMENTOS 
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No post denominado O que é o custo médio ponderado de capital?, publicado neste EG, explicamos como se calcula o custo médio de capital a ser aplicado a projetos de investimentos de empresas. E no post Como reduzir o custo médio ponderado de capital?mostramos, por meio de exemplo, como o custo de capital de terceiros (ou seja, a contratação de dívida, a baixo custo) ajuda a reduzir o custo médio em questão. 

Ademais, no post O que significam valor de mercado e valor econômico, ilustramos o uso do custo médio ponderado de capital em exemplo de cálculo do valor econômico de uma empresa. Tal custo serve não apenas para estimar o valor econômico citado, mas também para calcular o retorno econômico de projetos de investimento, usando lógica similar à do cálculo do valor de mercado da empresa. 

Em um país que necessita de muitos investimentos para que possa crescer e reduzir a grande desigualdade social, se a taxa básica Selic se torna elevada ao longo de períodos prolongados, isso pode ter dois efeitos:

1) Torna muitos empreendedores distantes de obterem um custo de capital de terceiros realmente favorável para que possam investir, aumentando, ao invés de reduzir, o custo médio ponderado de capital (especialmente no caso daqueles sem acesso a linhas de financiamento realmente interessantes). E se esses empreendedores contratarem dívidas para projetos de investimentos em elevados patamares de taxas de juros, é muito provável que não consigam pagá-las.  

2) Desestimula, na prática, empreendedores a realizar bons projetos de investimentos que eles, porventura, tenham identificado. Afinal, esses agentes econômicos não precisam fazer muito para obterem um rendimento considerável para o seu capital: basta aplicarem em títulos do mercado nacional que rendam valores ao redor da taxa Selic e ficarem à espera de seus proventos financeiros. Por quê mesmo investir, nessas circunstâncias, tendo que enfrentar riscos de diversos naturezas, inerentes à administração de empresas e negócios? Ponto de atenção: cumpre diferenciar quem investe em negócios de quem aplica no mercado financeiro; trata-se de conceitos diferentes.

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A ÓTICA DOS PRINCÍPIOS 
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Sob o prisma da governança, são aqui apresentadas algumas reflexões, considerando princípios apresentados em A governança do Banco Central (III), os quais emanam da Lei Complementar 179/2021. Consideramos, nessas reflexões, os vários patamares de taxa Selic do gráfico acima, especialmente o de 13,75 ao ano, bem como argumentos dos macroeconomistas André Lara Resende e Mônica De Bolle.

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Princípio da garantia da estabilidade de preços (art. 1o da LC)

Preocupa que o estabelecimento da taxa Selic no patamar de 13,75% ao ano não seja, atualmente, um instrumento de efetivo combate da inflação brasileira. Nesse sentido, a garantia da estabilidade de preços pode se tornar, em grande medida, inviável.

Princípio do fomento do pleno emprego (idem)

Preocupa que a taxa Selic no patamar de 13,75% ao ano, mesmo não sendo, no presente, instrumento eficaz de combate da inflação, seja, todavia, instrumento muito eficaz de desaquecimento das atividades econômicas no Brasil. Para combater sua forte desigualdade social, o Brasil necessita de investimentos. Desestimular investimentos, especialmente estimulando com força aplicações financeiras daqueles que poderiam investir, compromete a renda e os empregos e cria. no limite, o risco de recessão econômica. 

Princípio da suavização das flutuações econômicas (idem)

Preocupa, em que pesem a pandemia Covid (algo nunca vivido pelas atuais gerações que povoam o Planeta), e o crescimento da inflação (no Brasil e em vários países), a grande flutuação da taxa Selic no gráfico acima apresentado. 

Ao longo do período mostrado (final de 2018 até 1/2/2023), a taxa oscilou: 

- de 6,5% (dez/2018) a 2,00% ao ano (ago/2020), tornando-se negativa, ao ser descontado o efeito da inflação); e,

- de 2,00% (jan/2021) a 13,75% ao ano (ago/2022 até o presente). 

Chama-nos a atenção, especialmente, a forte ascensão da taxa Selic desde que esta voltou a subir, a partir do patamar de 2,00% ao ano (mar/2021).

Princípio do zelo pela eficácia do sistema financeiro (idem)

Preocupa, ainda, que com o patamar atual da taxa Selic, o sistema financeiro não esteja, afinal, ajudando a financiar atividades econômicas e bons projetos de investimentos. O sistema financeiro nacional é estável e eficiente em diversas atividades e serviços, mas contextos prolongados com altas taxas de juros devem acender uma espécie de luz amarela. Há que lembrar que, além do "não financiamento" de potenciais investidores, mesmo com o crescimento de aplicadores (rentistas), juros altos podem aumentar a inadimplência de clientes, contribuindo para deteriorar as finanças bancárias. 

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Conforme se observa, as discussões sobre a política monetária têm implicações profundas, relacionadas a  princípios de governança, implícitos, que emanam do ordenamento jurídico, sendo, portanto, muito importantes para o País e seu desenvolvimento. 

Ao mesmo tempo, em linha com o princípio da aderência às metas monetárias do Conselho Monetário Nacional (CMN), o qual emana do art. 2o da LC 179/2021, o Governo Federal e o Banco Central terão a oportunidade de dialogarem para alterar, em breve, as metas atuais da política monetária nacional. Criando o entendimento necessário à governança mais elevada do País e reduzindo ou até eliminando a polêmica. Aguardemos, portanto. 

Finalizamos expressando o entendimento que a formalização da autonomia do Banco Central do Brasil é, em princípio, um avanço a ser enaltecido na governança específica da Instituição e na governança mais alta do Brasil, tendo o propósito de ajudar a proteger a saúde da economia nacional. Lembrando que a formalização da autonomia do Banco é recente, de cerca de dois anos, e que pode-se melhorar, sempre, o exercício dessa autonomia. 

Ao mesmo tempo, lembramos, como não poderia deixar de ser, que, ao lado do princípio da autonomia, egresso da LC 179/2021, art. 6o, há outros poucos e bons princípios também muito relevantes a serem observados, egressos do art. 1o, caput e parágrafo único da mesma Lei, que devem ser observados pela Alta Administração do Banco Central. Se esses princípios forem desconsiderados e se for instalada a falta de harmonia entre os governantes democraticamente eleitos pelo povo brasileiro e os dirigentes do Banco, isso não será bom - na verdade, será péssimo - para a governança do País. 

(conclui)   (atualização em 31/3/2023, nos dois parágrafos finais)

Mônica Mansur Brandão

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Este artigo integra o seguinte conjunto, baseado em legislação relacionada ao Banco Central e em informações disponibilizadas pelo site do Banco:

Sobre as estruturas de governança do Banco

Sobre o relacionamento entre a Instituição e o CMN, bem com as competências do Banco

Sobre os objetivos, autonomia e metas de política econômica do Banco

Sobre a polêmica recente ao redor da taxa Selic e suas implicações quanto a princípios de governança 

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Sugestões de leitura: 

Disposições sobre o Conselho Monetário Nacional (CMN) e o Banco Central entre outras

Disposições sobre objetivo, metas de política monetária e autonomia do Banco Central entre outras