sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Solipcismo organizacional: a bolha que vai da miopia à fraude


O solipcismo é uma das ideias mais intrigantes – e desconcertantes – da filosofia. Em termos simples, é a noção de que apenas a própria mente pode ser conhecida como real. O mundo externo, as outras pessoas e até mesmo a história seriam projeções da consciência individual. Neste breve artigo, não nos aprofundamos nessa visão filosófica, focando sua aplicação, como metáfora, ao ambiente organizacional.

Nessa linha de raciocínio, podemos pensar em versões mais brandas da ideia, em um solipcismo leve, que não nega totalmente a realidade exterior, mas que pode ignorá-la, quando não deveria. Já em uma forma extrema, podemos vislumbrar um solipcismo radical, um status no qual nada existe fora da mente e tudo fora dela seria ilusão: objetos, pessoas, mercado, até o universo. 

Essa lógica gradativa funciona como um alerta para os riscos de viver em bolhas de percepção, já que ambos, solicipcismo brando e radical, podem ser eivados de riscos. E quando transportamos a ideia de solipcismo para organizações, chegamos ao que chamamos aqui de solipcismo organizacional, que poderia ser também solipcismo corporativo, no caso de grandes empresas. Ocorre quando líderes de organizações – especialmente conselheiros de administração e executivos C-Level – passam a agir como se apenas sua visão interna fosse válida, ignorando sinais externos e/ou exigências éticas.

E poderíamos pensar em gradações: o solipcismo organizacional leve apareceria quando os líderes organizacionais (por vezes, com o apoio de sócios, com o poder que o capital lhes dá) acreditassem demais em tradição ou em autossuficiência, fechando os olhos para mudanças ao redor. Já o solipcismo organizacional radical surgiria quando esses líderes construíssem deliberadamente uma realidade fictícia para sustentar sua própria narrativa. Nada como exemplos para ilustrar.


Nos anos 1970, a relojoaria suíça era referência mundial de precisão e luxo. Segura de sua superioridade, subestimou a chegada dos relógios digitais, que seriam mais baratos e populares. Ignorou o grito do mercado, acreditando que sua tradição bastaria para manter o domínio. Esse é o caso do solipcismo organizacional leve: uma espécie de miopia estratégica, fruto da premissa de que a percepção interna era suficiente. Empreendedores japoneses sem solipcismo entraram em cena e o resultado foi uma crise profunda, só parcialmente revertida quando algumas empresas se reposicionaram no nicho de luxo.

Exemplo 2: Caso da Enron

No início dos anos 2000, uma das maiores e mais admiradas empresas de energia do mundo manipulava balanços e escondia dívidas (entre outros atos dessa natureza) para sustentar a imagem de prosperidade. Criava-se, dentro dos muros da companhia, um universo fictício, sustentado por falsas narrativas. Aqui não se tratava de miopia, mas de solipcismo corporativo radical: a negação consciente da realidade. Personagens importantes da empresa acreditaram que poderiam impor sua ilusão interna ao mercado. O resultado foi um dos maiores colapsos empresariais da história, com falência bilionária, desemprego em massa e um abalo profundo na confiança do sistema financeiro.

O raciocínio pode ser ampliado quando se considera o ambiente geopolítico. O solipcismo, nesse plano, se manifesta como solipcismo geopolítico: organizações que agem como se o cenário internacional não existisse ou fosse irrelevante para sua sobrevivência.

Na versão branda, isso significa subestimar mudanças em regulações internacionais, tecnologias, cadeias de suprimento e outros temas que podem impactar negócios, confiando apenas em tradição ou liderança histórica. Trata-se de uma espécie de miopia estratégica diante do ambiente global que, cedo ou tarde, cobra seu preço em perda de competitividade.

Na versão radical, o solipcismo geopolítico aparece quando uma corporação multinacional (nem sempre) constrói a narrativa de autossuficiência absoluta, crendo que pode se isolar de restrições regulatórias, sanções ou da dependência de tecnologias e insumos críticos vindos de outros países. Essa ilusão pode ruir de forma abrupta, resultando em bloqueios, perdas de mercado e na premência da reinvenção, nem sempre possível.

Como combater o solipcismo organizacional? O risco de cair em versões brandas ou radicais dessa postura é permanente, mas pode ser mitigado com práticas inteligentes de governança corporativa, entre as quais:

De cunho estratégico

- Administração profissional da estratégia, não apenas protocolar;

- Diversidade de vozes no conselho, evitando o perigo do pensamento único.

De cunho cultural e organizacional

- Incentivo à transparência e ao diálogo contínuo entre gestores, colaboradores e stakeholders, de modo a reduzir o risco de formação de bolhas mentais

- Autoavaliação de conselhos, que reduzem o risco de estes se fecharem em si mesmos.

De cunho ético

- Criação e aplicação efetiva de códigos de conduta, visando a disciplinar condutas; e,

Compliance e a produção de relatórios claros e sem narrativas artificiais.

Essas e outras práticas operam como antídotos contra a tentação de acreditar que apenas a visão interna basta. E como se percebe, não existe apenas um mecanismo de prevenção, mas vários. 

Neste breve artigo, a ideia de solipcismo é apenas uma provocação. No mundo real das organizações, porém, viver em bolhas é uma armadilha perigosa. O solipcismo leve pode até parecer inofensivo, mas conduz à miopia estratégica e ao enfraquecimento competitivo, que pode ter implicações graves. O solipcismo radical, por sua vez, pode gerar práticas fraudulentas, corroer a confiança e levar à derrocada.

Os riscos não se limitam ao ambiente interno. Quando empresas ignoram os riscos de relações internacionais entre países, disputas tecnológicas, cadeias de suprimento e outros temas que ultrapassam limites nacionais, caem no solipcismo geopolítico. E em ambas as versões de solipcismo, branda ou radical, organizações que se fecharam em si mesmas, porque seus líderes assim permitiram, acabam despertando da grande bolha mental e, por vezes, de forma muito dolorosa e irreversível.

Por fim, é importante ressaltar: se sem solipcismo já não se consegue visualizar tudo o que pode ocorrer e impactar o futuro de uma organização, já que somos humanos e temos as nossas limitações preditivas, com solipcismo, os riscos se ampliam consideravelmente. Residir na bolha mental não é, definitivamente, algo recomendável.  


Mônica Mansur Brandão


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