quarta-feira, 14 de maio de 2025

O pensamento multidisplinar na obra "O Mercador de Veneza" (2/3)


De maneira talvez mais explícita do que no caso da Economia, William Shakespeare aborda questões jurídicas relacionadas ao ambiente de O Mercador de Veneza. A peça adentra vários campos jurídicos: Direito das Obrigações, Direito Constitucional e muito mais, se nos detivermos em uma análise exaustiva, o que não é o caso deste breve artigo. Nessa perspectiva, passemos ao Direito.

PARTE II - DIREITO


O ambiente institucional em que se movimentam as personagens

Publicado no final do século XVI, O Mercador de Veneza se ambienta em uma Veneza renascentista, na Idade Moderna, caracterizada pela força do comércio. A cidade-república era governada pelo Doge e seu sistema jurídico refletia um equilíbrio delicado entre a ordem institucional e os interesses privados. 

Ainda que moderna em sua estrutura, Veneza carregava resquícios da Baixa Idade Média (século XI ao XV), especialmente nos costumes sociais e na presença de comunidades segregadas, como a dos judeus. A Igreja Católica daquele tempo, embora sem controle direto sobre o governo veneziano, exercia forte influência moral sobre a sociedade. 

Preceitos como a condenação da usura e a superioridade ética dos cristãos de O Mercador de Veneza moldavam as relações interpessoais. O personagem Shylock, judeu e prestamista, encarna o conflito entre o direito contratual e a exclusão religiosa: ele exige a aplicação literal do contrato, mas é, ao mesmo tempo, tratado com desprezo por pertencer a uma fé marginalizada. Pode-se visualizá-lo, a um só tempo, como algoz e vítima.

No desfecho, a fala de Pórcia sobre a misericórdia expressa a visão cristã de justiça moderada pela compaixão. Porém, a misericórdia é seletiva no contexto da peça: contratual e financeiramente, salva o cristão Antônio e destrói o judeu Shylock. A suposta superioridade moral é usada como instrumento de poder. Shakespeare, com fina ironia, expõe a contradição de um sistema que exalta virtudes universais, mas as aplica de forma seletiva. A peça convida à reflexão sobre o uso seletivo da religião, da lei e da moral em sociedades que se dizem civilizadas.


O Direito das Obrigações, os contratos e o pacta sunt servanda

Desejando ajudar seu amigo Bassânio, Antônio firma com Shylock um acordo escrito, que estipula um empréstimo de 3.000 ducados a juro zero, para devolução em três meses, sob a condição de que, se  os recursos não forem devolvidos no prazo em questão, Shylock poderá retirar uma libra da carne de Antônio. 

Embora bizarro, esse contrato é tratado pelas personagens de O mercado de Veneza como legalmente vinculante, a ponto de Shylock levá-lo ao tribunal para exigir seu cumprimento literal. Pacta sunt servanda: contratos devem ser cumpridos.

Do ponto de vista do Direito das Obrigações, previsto no Livro I do Código Civil brasileiro (Lei 10.406/2002), em 10 Capítulos, diversas questões emergem. Primeiramente, a validade hipotética de um contrato com objeto tão macabro. Alguém poderia imaginar, no Código Civil, uma norma que atentasse contra a dignidade humana, a integridade física e a vida? Contra a ordem pública?

Na trama, porém, a força obrigatória dos contratos é levada ao extremo, talvez como crítica ou sátira. William Shakespeare assume liberdade criativa ao imaginar que o ordenamento jurídico da Veneza da obra pudesse permitir tal acordo. A ideia é explorar a possibilidade desse contrato para tratar de temas mais profundos.


O Direito Constitucional e a dignidade da pessoa humana

Na Constituição Federal de 1988, o princípio da dignidade da pessoa humana é um dos mais importantes, se não for o mais. Enfatiza-se, por oportuno, o seu primeiro artigo:

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Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político.

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A dignidade humana é violentamente confrontada nesse pacto: Shylock clama pelo cumprimento da palavra escrita, mesmo que isso signifique matar Antônio.

A tensão entre o pacto legal e a moral é exposta de forma brilhante no julgamento (Ato IV, Cena 1). Por um lado, Shylock insiste no que seria a justiça estrita – o contrato deve valer acima de tudo, pois foi acordado. Por outro, a personagem Pórcia, disfarçada de sábio juiz, e os demais apelam à misericórdia e à razoabilidade, argumentando que a justiça cega, sem compaixão, pode se tornar desumana.

O discurso de Pórcia sobre a misericórdia enfatiza que a clemência é uma virtude divina e que os poderosos mostram maior grandeza ao perdoar do que ao punir estritamente. Esse apelo à misericórdia coloca a dignidade da vida humana acima do formalismo jurídico; afinal, tirar uma libra de carne de alguém é punir com a morte um devedor, o que fere princípios básicos de humanidade.


O Direito Constitucional, a dignidade humana e a liberdade religiosa

Perdoem-nos os leitores pela antecipação do final, mas após tantos anos de publicação da obra de William Shakespeare, não se pode falar em spoiler. Portanto, podemos dizer: a personagem Pórcia salva Antônio do seu destino contratualmente previsto. 

Pórcia não obtém a anulação do contrato, mas o interpreta ao pé da letra para frustrar Shylock: ele pode tirar exatamente uma libra da carne de Antônio; porém, não tem o direito de tirar mais nada, uma gota de sangue adicional sequer. Nada, seja sangue, seja vida, pode Shylock retirar do mercador que não seja a libra da carne de Antônio contratualmente prevista.  

Surpreso com a interpretação do douto juiz representado por Pórcia, disfarçada (e por ninguém reconhecida), o prestamista Shylock deseja aceitar a oferta de pagamento em dinheiro feita por Bassânio, duplicada em valor. Entretanto, ele não tem esse direito - assim determina o inusitado juiz.

Além disso, Pórcia invoca uma lei de Veneza que condena estrangeiros que atentem contra a vida de um cidadão veneziano, o que leva a Shylock incorrer na pena associada a essa lei, por ter firmado macabro acordo e exigir seu cumprimento. Juridicamente, Pórcia usa uma norma legal para, mais do que defender a vida de Antônio, penalizar o prestamista pelo seu desejo de vingança (real). 

O Doge, autoridade máxima de Veneza, poupa a vida de Shylock, mas este tem seus bens confiscados, além de ser obrigado a se converter ao Cristianismo (e aliás, segundo Shakespeare, o prestamista não é posteriormente encontrado para fazer cumprir essa última determinação). Um desfecho que, sob a ótica do Direito Constitucional brasileiro, também suscita debate sobre dignidade e a coerção religiosa como punição, senão vejamos:

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Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

[...]

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

[...]

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Obrigar Shylock a aderir ao Cristianismo respeitou sua dignidade, à luz do Direito Constitucional moderno? Respeitou o seu direito, como ser humano, de professar sua religião de origem e escolha (judaismo)? Claramente, a resposta é não


Mais algumas reflexões

Do ponto de vista jurídico, Shakespeare provoca reflexões sobre dignidade humana e a sustentabilidade do sistema de justiça. Algumas das questões implícitas, não exaustivas, são: 

Contratos devem ser cumpridos literalmente, quando o resultado afronta a dignidade humana?

A legitimidade de um ordenamento jurídico está assegurada na afronta de princípios fundamentais?

A justiça pode punir um cidadão com a perda do direito à liberdade religiosa?

Lendo O Mercador de Veneza com lentes contemporâneas, percebemos que a legitimidade de um ordenamento jurídico depende de subordinar as normas vigentes à preservação da dignidade humana. 

Se as leis da Veneza de William Shakespeare permitissem a execução literal do instrumento contratual firmado entre Shylock e Antônio, isso abalaria a confiança na justiça e humanidade daquele sistema. A longo prazo, um ordenamento jurídico dessa natureza perderia sua razão de ser social. 

Por fim, O Mercador de Veneza também faz pensar sobre mais aspectos legais. Por exemplo, no âmbito do Direito das Sucessões, a solução adotada pelo pai de Pórcia para proteger a filha e sua herança. Ou os acordos entre Antônio e aqueles que comandavam seus navios pelos mares do Planeta, do âmbito também do Direitos Empresarial. E la nave va.


Continua em:




Mônica Mansur Brandão


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