quarta-feira, 14 de maio de 2025

O pensamento multidisciplinar na obra "O Mercador de Veneza" (1/3)

 

O Mercador de Veneza é uma das peças mais conhecidas de William Shakespeare, notória por sua trama envolvente e personagens marcantes. Além de ser uma obra literária clássica, oferece rico material para análise sob diferentes perspectivas. De maneira explícita e implícita, William Shakespeare aborda questões econômicas relacionadas ao ambiente de O Mercador de Veneza, sobre as quais se pode refletir à luz do conhecimento atual. Assim sendo, comecemos pela Economia.

PARTE I - ECONOMIA


O ambiente econômico em que se movimentam as personagens

A economia do contexto da peça pulsa sob a sua superfície. Ambientada na efervescente cidade portuária de Veneza, no século XVI, O Mercador de Veneza apresenta um retrato vívido do nascimento de um capitalismo mercantilista, marcado pelo comércio internacional dos primórdios da globalização, pela ausência de um sistema bancário estruturado como conhecemos hoje e por elevados riscos comerciais e financeiros.

Naquela época, ainda não existiam bancos formais acessíveis ao público como intermediadores de crédito. A atividade de empréstimo de dinheiro era exercida, ou por cristãos abastados, ou por prestamistas, isto é, pessoas (como judeus, ou seja, de outra religião) que forneciam capital a terceiros em troca de juros. 

A cobrança de juros era cercada de restrições morais e religiosas: enquanto os cristãos recriminavam a prática de cobrar juros entre si (o que seria considerado usura), os judeus, por não estarem sujeitos à mesma norma religiosa, acabaram ocupando um papel de financiadores privados na economia. 

Na peça, Shylock é representante dessa figura de financiador: é prestamista e empresta dinheiro sob condições estritas e juros definidos.  

As opções de financiamento da Veneza eram, portanto, limitadas e arriscadas:

1. Empréstimos entre particulares, baseados em confiança ou contratos rudimentares;

2. Empréstimos com juros, com cláusulas severas, oferecidos pelos prestamistas;

3. Parcerias comerciais, em que um sócio aportava recursos para um empreendimento de risco; e,

4. Penhor de bens e navios, comum entre mercadores.

Antônio, o mercador cristão, é rico, mas todo o seu capital está investido em navios que cruzam os mares em prol da compra e venda de mercadorias, o que o torna muito vulnerável a perdas e inadimplência. Isso mostra o elevado risco intrínseco associado a essa atividade econômica. E por se encontrar momentaneamente sem recursos em caixa, Antônio se vê na constrangedora situação de pedir recursos emprestados a Shylock, a fim de ajudar o amigo Bassânio.

Assim, O Mercador de Veneza vai além de histórias pessoais entrelaçadas: é um retrato dramatizado da ascensão do capitalismo comercial europeu, em um contexto em que o crédito privado ainda padecia de mecanismos que facilitassem o seu acesso. E em que a honra e a amizade ainda eram invocados entre os cristãos. 

A peça não deixa de ser um confronto entre o capitalismo mercantilista e o capitalismo financeiro do momento em que os fatos acontecem. Antônio representa o primeiro e Shylock, o segundo.


Dois modelos de empréstimos distintos e o conflito interno de Antônio

Antônio e Shylock atuam em um mesmo nicho (empréstimos), mas com modelos de financiamento distintos: sem juros versus com juros. A não cobrança de juros impacta o modelo prestamista e causa atritos, senão vejamos: 

a) Antônio, cristão, mercador internacional e homem de posses, destaca-se por emprestar dinheiro aos amigos necessitados sem cobrar juros, algo louvável eticamente aos olhos de seus pares cristãos.

b) Shylock, judeu, prestamista com recursos financeiros, sustenta-se cobrando juros de quem precisa de crédito, possivelmente uma das poucas atividades financeiras abertas aos judeus na Europa medieval / renascentista. 

c) No modelo cristão, a confiança entre pessoas é a base de sustentação de empréstimos. No modelo prestamista, a confiança é limitada e o risco é precificado pela cobrança de juros.

d) Shilock e outros prestamistas se ressentem do modelo de empréstimo cristão que, a seu ver, rebaixa as taxas de juros por eles cobradas.

É visível que pedir dinheiro emprestado a Shylock - três mil ducados, com promessa de devolução em três meses - é algo altamente incômodo para Antônio que, por sua religião e ética, rejeita a cobrança de juros. Ademais, o mercador também abomina a figura de Shylock, a quem abertamente manifesta desprezo, inclusive no momento do pedido de empréstimo.

Todavia, sem recursos em caixa para ajudar Bassânio, Antônio opta por se submeter ao modelo prestamista, para não deixar o amigo sem apoio. Assim, face a dificuldades momentâneas de caixa, o mercador participa de uma transação de empréstimo com Shylock, aceitando oferecer uma garantia macabra: uma libra de sua carne, se não honrasse o empréstimo contraído. Antônio não acredita que não poderá honrar o contrato, com base em suas expectativas de lucros em seu negócio.


Alguns elementos econômicos a destacar

Há elementos específicos da terminologia econômica que merecem ser aqui comentados. O primeiro é a questão da confiança. Entre Antônio e Shylock, inexiste confiança: ambos, aliás, entram no acordo com rancor, formalizando-o por escrito. Antônio empresta recursos a Bassânio sem contrato escrito, movido pela amizade e a honra; já com Shylock, o formalismo se torna necessário. 

Em segundo lugar, menciona-se a presença de termos da Matemática Financeira. A referência a itens como valor do empréstimo, prazo de devolução e taxa de juros traz para o centro do palco uma terminologia financeira corriqueira nos tempos atuais. Shakespeare, séculos antes de teorias econômicas formais, tratou de conceitos como valor do dinheiro no tempo e o risco de crédito, presentes na relação de empréstimo.

Por fim, e como terceiro elemento a considerar, tratemos da teoria das expectativas racionais. Shakespeare contesta vivamente essa teoria em O Mercador de Veneza, muito antes de esta ser enunciada. Shylock propõe juro zero para Antônio, mas amarra o contrato a uma garantia cruel: uma libra da carne de Antônio. O prestamista abre mão do seu retorno em prol de um ressentimento pessoal. Estamos diante de um agente econômico atuando não pela maximização do seu lucro, mas por motivação exclusivamente emocional: vingança. O homo economicus racional deixa de existir em Shylock, movido pelo ódio. 


Mais algumas reflexões

A Economia, embora por vezes erroneamente tratada como ciência exata, é profundamente humana. Seus números e equações não existem no vácuo, operam com base em pessoas e suas motivações profundas. O Mercador de Veneza nos lembra disso, ao dramatizar como decisões financeiras podem estar enraizadas em honra, amizade ou ressentimento.

William Shakespeare nos mostra que o risco não reside apenas nas flutuações do mercado, mas no comportamento humano. A Economia, portanto, não é feita apenas de taxas e prazos, mas de escolhas, nem sempre racionais. 

Finalizando, a confiança, tão central na peça quanto nos mercados modernos, continua sendo o ativo mais valioso de qualquer transação. Contratos com cláusulas severas podem mitigar riscos contratuais, mas a história de Antônio e Shylock ilustra com perfeição como a ausência de confiança, necessariamente calcada na boa-fé, pode transformar um contrato em uma bomba-relógio moral e econômica. A Economia necessita de confiança e boa fé.


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