quarta-feira, 14 de maio de 2025

O pensamento multidisciplinar na obra "O Mercador de Veneza" (3/3)

 

A peça O Mercador de Veneza também permite reflexões sobre governança corporativa e gestão de riscos. O capitalismo mercantilista desta obra de William Shakespeare tem investidores, modelos de governança e riscos em grande medida. Adicionalmente, tanto o mercador Antônio quanto o prestamista Shylock incorrem em grandes erros de gestão de riscos em seus negócios. Passemos a esses temas.

PARTE III - GOVERNANÇA E GESTÃO DE RISCOS


O ambiente empresarial em que se movimentam as personagens

O Mercador de Veneza, embora peça teatral, oferece uma rica representação de um ecossistema comercial sofisticado. A Veneza retratada por Shakespeare era uma cidade-estado portuária, integrada a rotas comerciais internacionais, onde contratos (palavra empenhada), riscos e reputações determinavam o sucesso nos negócios. As relações empresariais dependiam fortemente da confiança mútua e da credibilidade dos agentes, o que tornava a quebra de compromissos algo gravíssimo. A palavra do mercador equivalia a uma garantia de solvência e responsabilidade.

Nesse contexto, os empreendedores eram também investidores, gestores de risco e figuras sociais influentes. Não havia distinção clara entre a pessoa física e a pessoa jurídica: o fracasso nos negócios comprometia não apenas o capital, mas a honra. As relações contratuais baseavam-se tanto na rigidez legal quanto na flexibilidade das negociações informais. Tudo isso ocorria sob a ausência de uma estrutura moderna de regulação corporativa.

O financiamento das operações era descentralizado. Mercadores como Antônio levantavam capital próprio ou de terceiros para enviar mercadorias a diversos portos, em viagens longas e arriscadas. O risco era distribuído entre os navios, mas a dependência do sucesso de cada rota tornava o sistema extremamente vulnerável a fatores externos, como clima, pirataria e instabilidade política.

A estrutura contratual criava uma espécie de governança privada entre as partes. Em vez de conselhos administrativos ou auditorias formais, vigiava-se a reputação: um mercador que descumprisse acordos perdia acesso ao crédito e ao mercado. A gestão de riscos e a governança, portanto, baseavam-se em regras implícitas e na pressão social exercida pelos pares.


Governança, propriedade e gestão - visão específica do negócio na globalização daquele tempo

O mercador Antônio é o exemplo clássico de um investidor que também exerce a gestão direta de seus ativos. Ele não delega decisões: escolhe as rotas, os produtos, os navios e os prazos. Tal concentração de funções representa uma ausência total de separação entre propriedade e administração. Sua exposição ao risco é máxima.

Os navios mercantes de Antônio são enviados simultaneamente a diferentes destinos. A intenção poderia ser a diversificação de riscos, mas falta-lhe um sistema de monitoramento ou de seguros robusto. Antônio depende exclusivamente do sucesso dessas viagens para manter sua liquidez. Esse modelo, embora corajoso, é frágil e sem planos de contingência.

A inexistência de uma estrutura corporativa formal o torna vulnerável a choques externos. Ao colocar todos os seus recursos em circulação simultaneamente, Antônio aparentemente não cria reservas nem adota instrumentos de proteção. Sua estratégia é baseada em reputação e sorte, não em planejamento financeiro técnico. Não se pode esquecer, ao mesmo tempo, que o capitalismo ainda engatinhava na criação do seu vasto ferramental administrativo.


A gestão de riscos: falhas do mercador Antônio e do prestamista Shylock

A primeira grande falha do mercador Antônio é a concentração de risco sem proteção formal. Ao empregar todos os seus recursos em operações simultâneas, sem manter reservas ou contratar seguros (haveria esse instrumento no ambiente da Veneza de Shakespeare?), ele compromete sua liquidez e se expõe integralmente a eventos fora de seu controle. Trata-se de um erro clássico de gestão de riscos, agravado pela falta de diversificação temporal.

A segunda falha é de natureza emocional e reputacional. Antônio assina um contrato que envolve sua própria integridade física, movido por um senso de dever e lealdade para com seu amigo Bassânio. Ele não faz qualquer análise racional do risco. A ausência de limites claros entre razão e emoção conduz a decisões altamente destrutivas, mesmo que bem-intencionadas.

Shylock, por sua vez, também comete falhas graves. A primeira é a rigidez contratual excessiva, no sentido de desumana. Ao exigir uma garantia inusitada e cruel, ele compromete a exequibilidade do contrato. Mesmo que estivesse legalmente correto, sua posição se mostra estrategicamente desastrosa. A inflexibilidade o isola socialmente e compromete sua capacidade de recuperação financeira.

A segunda falha é subestimar os riscos jurídico e institucional. Shylock ignora a norma legal relacionada aos estrangeiros que tentarem prejudicar cidadãos venezianos e desconsidera o contexto cultural e religioso em que está inserido. Confia exclusivamente na letra da lei, sem conhecer toda a lei. Despreza a influência das instituições, dos costumes e do preconceito, com a visão nublada pelo ódio. A falta de visibilidade institucional o impede de prever o desfecho do julgamento, em que a justiça formal opera pela retórica da misericórdia.


Mais algumas reflexões

O Mercador de Veneza não é apenas uma obra literária sobre vingança e justiça. Ela é também uma poderosa narrativa sobre o risco em ambientes empresariais pouco institucionalizados. Tanto Antônio quanto Shylock fracassam em suas tentativas de gestão, por não levarem em conta variáveis humanas, culturais e estruturais. Antônio é salvo pela brilhante estratégia de defesa de Pórcia, mas não Shylock.

A obra mostra que a governança, quando inexistente ou informal, torna indivíduos vulneráveis a decisões impulsivas e a alianças precárias. A ausência de separação entre pessoa e empreendimento, entre emoção e estratégia, é ponto central do colapso de ambos os protagonistas.

Ao transpor esses ensinamentos para o contexto atual, vemos que a boa governança corporativa exige mais do que normas: requer visão estratégica, consciência dos riscos e sensibilidade para com o ambiente humano em que as decisões são tomadas.

Por fim, muito mais poderia ser dito sobre o Mercador de Veneza, nos planos da Sociologia (como viviam os cristãos, judeus, mulheres, escravos e outros estamentos sociais de Veneza?), Religião (como pensavam as pessoas de distintas crenças?), Psicologia (por que Antônio se mostrou deprimido no início da obra, aparentemente sem motivo?) e outros campos de conhecimento. Mas ficamos com essas considerações, recomendando fortemente a leitura dessa peça do genial escritor William Shakespeare. Obra imperdível.




Mônica Mansur Brandão


Veja o trailer abaixo de O Mercador de Veneza, filme estrelado por Al Pacino, Jeremy Irons e outros grandes atores: