sábado, 16 de setembro de 2023

A evolução capitalista e o capitalismo de stakeholders


O desenvolvimento do sistema capitalista pode ser dividido em fases, que refletem mudanças econômicas, sociais e políticas ao longo do tempo. A divisão pode variar, dependendo da perspectiva e teoria econômica utilizada. A seguir, apresentamos fases geralmente reconhecidas em textos sobre o histórico do capitalismo, especialmente as cinco primeiras.

1) Capitalismo primitivo

Este corresponde ao período inicial de transição do feudalismo para o capitalismo. Teve lugar na Europa Ocidental, a partir do final da Idade Média. Caracterizou-se pela propriedade privada dos meios de produção, como terras e espaços fabris, com as tecnologias daquele tempo, e pelo surgimento das primeiras formas de comércio e mercado. O trabalho assalariado ainda não era predominante e a produção estava, preponderantemente, baseada em sistemas de agricultura feudal.

2) Capitalismo comercial

Esta fase se desenvolveu nos séculos XVI a XVII, com o crescimento do comércio internacional e a acumulação de capital através do comércio. Assistiu-se a expansão do sistema mercantilista, no qual nações europeias buscavam acumular riqueza, através do controle do comércio e das colônias. A Revolução Comercial e a formação de grandes impérios coloniais são características desse período, onde residem os primórdios da globalização.

3) Capitalismo industrial

O século XVIII e, principalmente, o século XIX foram marcados pela Revolução Industrial, que trouxe inovações tecnológicas, como a máquina a vapor, a produção em massa e a mecanização. A produção manufatureira foi substituída pela produção em grande escala nas fábricas. Surgiu uma classe trabalhadora assalariada e a concentração de capital em mãos de empresários industriais.

4) Capitalismo financeiro

Tal fase teria começado no final do século XIX, prosseguindo até o presente, Caracteriza-se pela crescente relevância do setor financeiro na economia. Bancos de investimento, mercados de capitais e empresas multinacionais emergiram e se desenvolveram. A financeirização da economia se tornou uma de suas características centrais, com as transações financeiras desempenhando um papel significativo. Tal financeirização se entrelaça com as próximas duas fases descritas.

5) Capitalismo contemporâneo ou pós-fordista

Do final do século XX até o presente, o capitalismo vem passando por mudanças significativas. Novas teologias de informação, comunicação e automação intensificaram um processo de globalização econômica iniciado com as grandes navegações. O crescimento do setor de serviços, a emergência de uma economia do conhecimento e formas mais flexíveis de trabalho passaram a integrar distintas economias capitalistas. Temas como como inovação, mobilidade do capital e flexibilidade na produção ganharam as agendas corporativas. 

6) Capitalismo de stakeholders

O capitalismo de stakeholders, movimento em curso do final do século passado (anos noventa) até o presente, pode ser descrito como uma resposta à crise de confiança nas organizações empresariais. Empresas tradicionalmente focadas em maximizar o retorno econômico, frequentemente, têm negligenciado empregados, clientes, fornecedores e comunidades entre outros públicos. Desconsiderando as externalidades que criam e seus impactos no meio ambiente. Esse enfoque unidimensional resultou em mais desigualdade social e degradação ambiental.

Capitalismo 4.0: outra visão da história do capitalismo

O economista Anatole Kaletsky, no livro Capitalismo 4.0 - The birth of a new economy in the aftermatha of crisis (2010), identifica quatro grandes fases do sistema capitalista: Capitalismo 1.0 - baseado na ampla liberdade econômica, teria durado de 1776 até 1930; Capitalismo 2.0 - baseado no keynesianismo e em uma visão social, teria durado de 1930 a 1970; Capitalismo 3.0 - emergente a partir dos anos setenta, especialmente na era Reagan-Tatcher, culminou na globalização financeira e na recessão de 2009-10; e, Capitalismo 4.0 - uma visão aberta que reúne elementos do liberalismo e do keynesianismo.

O histórico da evolução do capitalismo de Kaletsky é uma abordagem distinta, que vai do laissez faire até as tendências vislumbradas pelo autor, para quem o capitalismo sempre se modifica e segue adiante, demonstrando grande resiliência. Neste artigo, consideramos as seis fases comentadas anteriormente, cuja escala de tempo é mais ampla e detalhada, sem deixar de reconhecer a possibilidade de outras visões relevantes.    

O entrelaçamento de três fases 

As seis fases anteriores não são estritamente lineares e, além de três delas estarem interpenetradas - as fases 4, 5 e 6 -, podem apresentar diferentes estágios em diferentes partes do Planeta. Ademais, os estudiosos da história dos sistemas econômicos podem considerar variadas abordagens no entendimento da evolução do capitalismo, conforme dito e merece ser enfatizado. Os momentos de início e fim das várias fases também podem ser objeto de divergências e o mais importante nos parece ser mais a ideia central de cada fase do que a sua perfeita localização no tempo, em função da controvérsia.

Outra consideração importante diz respeito à presença de características de todas as seis fases anteriores nos sistemas econômicos dos países ao redor do Planeta, substancialmente desiguais entre si e, se considerados individualmente, também dentro de suas fronteiras. Não nos deteremos aqui nessas características, mas elas existem.   

Avançando em nosso raciocínio, entendemos o seguinte: não estamos vivenciando, no presente, um capitalismo financeiro, ou pós-fordista, ou de stakeholders, mas estamos navegando nessas três correntes simultâneas, utilizando aqui uma metáfora marítima. Estamos vivenciando o que denominamos neste artigo capitalismo polifásico ou capitalismo complexo, lembrando que nada impede que outras correntes surjam e se avolumem, como o Capitalismo 4.0 vislumbrado por Anatole Kaletsky. 

Algumas premissas do capitalismo de stakeholders

Após essas considerações, focalizamos, doravante, a corrente que entendemos ser aquela com maior potencial de mudar o status quo de dentro para fora, isto é, da conscientização de líderes organizacionais a ações práticas em prol de mudanças, beneficiando pessoas, organizações, a sociedade e o meio ambiente: o capitalismo de stakeholders. Tal modelo coloca a ética, a governança corporativa e a sustentabilidade na sala das empresas e demais organizações da economia, o que significa que esses temas não podem ser ignorados, a começar pelas organizações de maior porte. 

O capitalismo de stakeholders pode fazer grande diferença na modulação para melhor de um sistema econômico que, se por um lado implicou a criação de estados constitucionais de direito e democratizou o acesso de milhões de seres humanos a bens e serviços, por outro lado, não resolveu e até aprofundou, em variadas situações, a desigualdade social e criou sérios riscos para o meio ambiente, colocando em risco vastas áreas planetárias. 

Quais são as premissas desse modelo? Observamos, sem esgotar as possibilidades: 

1) No capitalismo de stakeholders, as empresas e demais organizações da economia operam em um amplo ecossistema e têm variadas responsabilidades com as suas partes interessadas. No caso das empresas, isto implica considerar não apenas os lucros e retornos sobre os investimentos realizados, mas também os impactos socioambientais de suas operações. 

2) O capitalismo de stakeholders incorpora a ética, a governança e a sustentabilidade. Se o capitalismo financeiro e pós-fordista se caracterizam pelos elementos específicos de cada uma dessas duas ondas, o capitalismo de stakeholders considera o clássico triple bottom line, abrangendo as dimensões econômica, social e ambiental da sustentabilidade e postulando um desenvolvimento econômico sustentável.

3) O capitalismo de stakeholders requer culturas organizacionais éticas, além de estratégias e práticas de negócios genuinamente preocupadas com esses públicos, o que requer conscientização, liderança comprometida, métricas de desempenho adequadas e mudança cultural significativa.

4) A genuína preocupação com os interesses dos stakeholders tende a construir relacionamentos mais fortes e leais com clientes, fornecedores, empregados e outros públicos, o  que pode resultar em maiores satisfação para os envolvidos e produtividade.

5) Ao considerar uma gama mais ampla de perspectivas, as empresas do capitalismo de stakeholders podem identificar oportunidades de inovação que, de outra forma, poderiam ser negligenciadas.

6) Empresas operando sob a lógica do capitalismo de stakeholders estão melhor posicionadas para enfrentar crises financeiras e econômicas, uma vez que sua abordagem equilibrada reduz a exposição a riscos socioambientais.

Alguns desafios do capitalismo de stakeholders

Quais são os principais desafios desse modelo de capitalismo? De forma não exaustiva, elencamos os seguintes pontos de grande atenção: 

1) Mudança de mentalidade - a  visão dos stakeholders requer a efetiva internalização, em sócios e líderes organizacionais, de princípios éticos. Repudia a ideia de mera estratégia de marketing.

2) Equilíbrio delicado - encontrar o equilíbrio entre os interesses de diferentes stakeholders pode ser difícil. Priorizar demais um grupo em detrimento de outro resulta em conflitos e perda de eficiência.

3) Pressões de curto prazo - o modelo tradicional de maximização de lucros muitas vezes coloca ênfase excessiva em resultados trimestrais, o que dificulta a adoção de estratégias de longo prazo, orientadas para o bem de todos os stakeholders.

4) Medições de impacto - avaliar o impacto social e ambiental das operações empresariais não é algo trivial e requer métricas e procedimentos adequados, além de disciplina.

Tudo isso requer requer, previamente, lideranças comprometidas e a busca de mudança cultural significativa.

Concluindo

O capitalismo de stakeholders agrega uma lógica mais equitativa e sustentável para os negócios. Tem uma base ética. Reconhece a governança e a sustentabilidade. E admite que as empresas e as demais organizações da economia têm um papel crucial a desempenhar na resolução dos desafios sociais e ambientais do nosso tempo. 

Ao mesmo tempo, há que considerar não apenas os desafios próprios desse modelo de capitalismo, mas o maior nível de abrangência do capitalismo polifásico ou complexo, que também também contempla mais duas correntes: o capitalismo contemporâneo ou pós-fordista e o capitalismo financeiro. Preocupa-nos, especialmente, a financeirização e seus impactos e riscos sobre estados nacionais, as empresas e as famílias, com especial destaque para o risco do endividamento desses agentes. O que não é apenas uma questão a ser enfrentada pelo Brasil, há que reconhecer.

Finalizamos lembrando que o recentemente atualizado Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) incorporou uma abordagem principiológica que valoriza os stakeholders. E aproveitamos para lembrar que o tradicional Congresso do IBGC, neste ano de 2023, terá como tema Governança em rede: conectando stakeholders.


Mônica Mansur Brandão

A versão em inglês deste artigo pode ser vista no nosso Governance Room.


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