Queremos que o País melhore?
O conceito de Estado mínimo ganhou certa popularidade ao longo de décadas, especialmente entre adeptos do liberalismo econômico. Todavia, este não é o conceito adequado a uma sociedade regulada com base em princípios e normas constitucionais, previstas, no caso do Brasil, em sua Constituição Federal (1988). Ignorar a realidade constitucional é desconsiderar a realidade nacional e a Carta Magna.
A ideia central inerente ao termo Estado mínimo é: o Estado deve ser pequeno, com poucas intervenções na economia e na vida dos cidadãos, limitando-se apenas a funções ditas essenciais como segurança, justiça e infraestrutura básica. Essa visão, por vezes promovida como a salvação de problemas econômicos e sociais, carece de fundamentos sólidos e ignora a realidade fática e o ordenamento jurídico. E tecnicamente se mostra incorreta, à luz da realidade nacional e da nossa Carta Maior, construída e promulgada por um Congresso Constituinte para lidar com essa realidade e os seus desafios.
Defensores do Estado mínimo argumentam que a atuação governamental é ineficiente, burocrática e propensa à corrupção. Acreditam que os mercados totalmente livres são o melhor mecanismo para alocar recursos, promover a inovação e assegurar a prosperidade. Sua argumentação sustenta que a competição nos mercados, guiada pela mão invisível de Adam Smith, leva ao desenvolvimento econômico e ao bem-estar social.
Todavia, os mercados são uma entre várias estruturas de governança da economia, conforme argumenta o artigo denominado Quais são as estruturas de governança do capitalismo?, publicado neste EG. Nele mostramos que a economia capitalista abrange várias estruturas ou mecanismos de governança, abrangendo empresas (firmas, termo mais usado pela Ciência Econômica), mercados, redes, associações, comunidades e o Estado entre outras. E mostramos que todos esses mecanismos têm papeis na economia e apresentam virtudes e defeitos. Os mercados, muito importantes, não são, todavia, panaceia para os males da economia.
Por que o Estado é importante e "ser mínimo" não é o conceito técnico correto?
Se críticas podem e devem ser feitas a cada um dos mecanismos de governança supracitados, incluindo o Estado, críticas assertivas podem e devem ser feitas à ideia de Estado mínimo, uma vez que os Estados contemporâneos, inclusive aqueles mais desenvolvidos, precisam, de modo não exaustivo:
1. Combater a desigualdade socioeconômica
Uma das principais críticas ao Estado mínimo é que ele tende a aumentar a desigualdade socioeconômica. Segundo os críticos, em mercados totalmente livres, os cidadãos economicamente privilegiados (ricos) teriam oportunidades praticamente ilimitadas de acumular riqueza e poder. Sim, sem um Estado incapaz de normatizar mecanismos de governança (inclusive a si próprio!) e implementar políticas sociais, a disparidade entre ricos e pobres pode se tornar insustentável, levando a grandes tensões sociais e, no limite, a rupturas políticas prejudiciais à sociedade.
2. Prover segurança e bem-estar social
Normas, políticas e programas do Estado orientados para trabalho, empregos, saúde, educação e assistência social, entre outros temas, são fundamentais para assegurar que os cidadãos tenham uma qualidade de vida mínima e oportunidades mais justas ou menos díspares. Sem redes de proteção social, muitos indivíduos podem viver (ou seria subviver?) na pobreza extrema, o que, por sua vez, pode levar a maiores custos sociais e econômicos no longo prazo, criando, ademais, instabilidade e, novamente no limite, rupturas políticas indesejáveis.
3. Prover estabilidade econômica
Um dos papeis mais relevantes do Estado é a estabilização da economia e, nesse sentido, destaca-se o papel dos bancos centrais. Além disso, em períodos de recessão ou situações específicas, o Estado pode atuar como agente estabilizador, injetando recursos financeiros na economia para estimular a demanda ou permitir a subsistência de muitos. O New Deal nos Estados Unidos, durante a Grande Depressão, é um primeiro exemplo clássico de como a ação estatal pode ajudar a recuperar uma economia. A crise COVID, bem mais recente, é outro exemplo inconteste. E vários outros exemplos poderiam ser dados. Um Estado mínimo, ao restringir a possibilidade de intervenções cruciais, pode agravar crises econômicas, não mitigá-las.
4. Estimular a inovação e o desenvolvimento
Contrariando a crença de que menos governo promove mais inovação, a realidade mostra que muitos avanços tecnológicos e científicos foram financiados por investimentos estatais. Internet, GPS, avanços médicos e energias renováveis são exemplos de tecnologias que têm recebido grandes investimentos públicos. O Estado tem um papel crucial em financiar pesquisa e desenvolvimento, sob regras claras, especialmente nas áreas em que o retorno financeiro não é imediato.
5. Prevenir e tratar as falhas dos mercados
Os mercados nem sempre funcionam de maneira perfeita e esta é uma constatação da realidade fática. Existem várias possíveis falhas de mercado, como os monopólios, as externalidades negativas (a exemplo da poluição) e a circulação e análise informacionais incapazes de eficácia plena. Essas e outras falhas podem criar privilégios e permitir ilicitudes inaceitáveis, mencionando-se os escândalos corporativos que os mercados financeiros e de capitais ao redor do Planeta não têm conseguido antecipar, como seria desejável. Um Estado mínimo, com sua ênfase na não intervenção, pode cometer uma falha imperdoável: deixar de prevenir e tratar essas falhas, criando ineficiências e injustiças, as quais prejudicam a sociedade e a própria atividade econômica, abalando a confiança de investidores.
Três exemplos práticos
Defensores do Estado mínimo frequentemente se referem aos EUA como paradigma dessa ideia. Todavia, o País não tem um Estado necessariamente mínimo e, ainda que tivesse, nele existe desigualdade socioeconômica e acesso desigual a serviços essenciais como saúde e educação. A falta de um sistema de saúde universal e os altos custos da educação superior são exemplos de grandes problemas crônicos que afetam milhões de cidadãos norte-americanos. Ao mesmo tempo, os EUA têm feito investimentos públicos relevantes para assegurar inovação tecnológica ao País, o que ajuda a fortalecer sua indústria (primeiro vídeo ao final).
Um segundo exemplo interessante a mencionar é o dos países nórdicos, como Suécia, Noruega e Dinamarca, frequentemente mencionados como exemplos de estados de bem-estar social robustos, os quais combinam qualidade de vida com economias eficientes. Esses países, ao mesmo tempo em que mantêm mercados livres e competitivos, têm Estados fortes e que oferecem uma ampla gama de serviços públicos, impostos progressivos e políticas redistributivas. Pode-se tecer eventuais críticas ao modelo em questão (não existe perfeição), mas não se pode negar sua existência e aspectos positivos (segundo vídeo ao final).
O terceiro exemplo aqui apresentado é o da República Federativa do Brasil, o nosso País. Poderíamos citar os vários princípios e normas constitucionais previstos na Carta Magna, sem os quais milhões de cidadãos em território nacional provavelmente morreriam à míngua, mas optamos por dois exemplos específicos: a Lei das Sociedades Anônimas (Lei. n. 6.404/1976), bem como a Lei do Mercado de Capitais (Lei n. 4.728/1965).
Quem, em sã consciência, defenderia a inexistência dessas duas Leis mencionadas e da regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM)? Um dos papeis mais importantes de um Estado é, precisamente, o de definir as regras do jogo, bem como de assegurar o seu enforcement, conforme demonstrou o professor Douglass North, agraciado com o Prêmio Nobel de Economia (1993). As regras do jogo são fundamentais para o desenvolvimento e desempenho econômico, conforme lecionou o ilustre pensador (artigo ao final).
Estado constitucional, o conceito técnico adequado
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Constituição Federal (1988)
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
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O conceito de Estado mínimo ignora as complexidades e necessidades reais das sociedades contemporâneas. Embora a liberdade econômica e a eficiência sejam muito importantes, a ausência do Estado pode levar a desigualdades, ineficiências e instabilidade social, econômica e política.
Um Estado capaz de assegurar direitos fundamentais a todos os cidadãos, prevenir tratamento injusto aos mais fracos ou mitigar seus efeitos, assegurar serviços públicos essenciais com qualidade e preço módico (prestados por ele, o Estado, ou por agentes privados sob sua fiscalização) e regular mercados, quando isso for importante - em suma, um Estado eficaz e forte, é fundamental para o desenvolvimento sustentável e o bem-estar geral da sociedade.
Ao invés da busca de um Estado mínimo, o foco deve ser a construção e consolidação de um Estado justo, equilibrado, eficaz e forte, cujas engrenagens operem em benefício da sociedade e do cidadão. E em um País com a Constituição Federal que o Brasil tem, também tratada como Constituição Cidadã, a qual organiza a República Federativa do Brasil e é uma forte carta de direitos humanos e fundamentais, o conceito de Estado mínimo não faz sentido, mas, sim, o de Estado constitucional.
O Estado constitucional não tem que ser máximo ou mínimo, deve ter o tamanho certo, a fim de que os direitos humanos e fundamentais sejam respeitados, de que o desenvolvimento socioeconômico se dê de forma responsável e aderente à Carta Magna, e de que a nação consiga se desenvolver com educação, saúde, justiça, paz social e muito mais. Sendo assim:
1. Se a Constituição Federal da República determina a existência de Poderes Legislativos em âmbitos Federal, Estadual e Municipal, em benefício da Federação, o que deve ser feito? Cumpra-se.
2. Se a Constituição determina o direito à saúde, entre vários outros, estruturas como o Ministério da Saúde, as Secretarias de Saúde Estaduais e Municipais e o Sistema Único de Saúde (SUS) se tornam necessárias ou mesmo imprescindíveis.
3. Se a Constituição determina que o Poder Judiciário deve abrigar o arcabouço previsto em seu texto, em âmbitos Estadual e Federal, as várias instâncias jurisdicionais devem ser criadas.
E muito mais. Como se vê, o Estado nacional é amplo, abrange três Poderes - Legislativo, Executivo e Judiciário - e todos os entes da Federação, por todo o território nacional - União, Estados, Municípios e o Distrito Federal (embora possível, presentemente, não temos territórios). Muitos, quando pensam em Estado mínimo, raciocinam apenas com o Poder Executivo ou governo, esquecendo-se da complexa governança do Brasil, um País com dimensões continentais, forte desigualdade e grandes desafios.
Por fim, ineficiências existem e precisam ser permanente e incansavelmente identificadas e combatidas (perfeição não existe, repetimos). A própria Constituição, a menos das suas cláusulas pétreas, que não podem ser alteradas pelo Poder Legislativo após a sua promulgação, admite mudanças. Mas as mudanças devem ser buscadas para melhorar e não para apagar disposições constitucionais imprescindíveis, duramente conquistadas pelo povo e que tornam sua vida melhor. Lembrando que o povo abrange todos os cidadãos, incluindo aqueles que defendem, mesmo tendo o direito de fazê-lo, a ideia tecnicamente incorreta de Estado mínimo.
Mônica Mansur Brandão
Leia também:
Sugerimos também o vídeo O mito do Estado mínimo, do professor José Kobori, especialista em Finanças e na estruturação de fusões e aquisições:
E sugerimos, por fim, o vídeo Sobre o modelo nórdico de gestão econômica, do professor Ladislau Dowbor: