Recentemente, a taxa básica Selic foi fixada em 15% ao ano pelo Banco Central (Bacen) – uma das mais altas do mundo em termos nominais, isto é, abrangendo juros reais e inflação. Para parte dos especialistas, esse número é apenas uma decisão técnica destinada a controlar a inflação. Mas por trás da aparente neutralidade, há implicações profundas para o presente e o futuro do País.
A lógica clássica da política monetária é conhecida: juros mais altos encarecem o crédito, desestimulam o consumo e o investimento e, assim, reduzem a pressão inflacionária. Trata-se de um freio deliberado sobre a atividade econômica – um remédio amargo contra o risco de perda de controle sobre os preços. Contudo, é legítimo perguntar: por quanto tempo um país pode conviver com esse remédio, sem se tornar, em função dele, fortemente adoecido?
Adiciona-se a isso o argumento do fator fiscal: com um histórico de instabilidade econômica e endividamento elevado, o mercado exigiria um prêmio de risco, segundo alguns defendem. Uma taxa Selic elevada, nesse cenário, seria uma compensação – o preço para manter a confiança dos agentes do mercado financeiro.
Um terceiro argumento a favor de uma taxa Selic elevada é o de atração do capital estrangeiro. Investidores internacionais buscam rentabilidade, e os juros altos tornam o Brasil mais atrativo, fortalecendo o real e elevando as reservas cambiais. Esta é a lógica deste argumento.
O quarto argumento é que manter os juros em patamares elevados seria uma forma de o Bacen demonstrar independência institucional e compromisso com a estabilidade econômica, mesmo que ao custo do crescimento, emprego e renda no curto prazo. Para os defensores do mecanismo dos juros altos, manter a credibilidade do Banco Central é crucial, e qualquer sinal de leniência pode gerar fuga de capitais, desvalorização cambial e inflação descontrolada.
Os argumentos anteriores, embora sejam importantes, tecnicamente não podem ser absolutizados. Esses fundamentos técnicos não podem circunscrever o debate, que não pode neles se encerrar. É preciso discutir o que a política de juros altos por tempo indeterminado representa para o Brasil real, aquele que vai além das planilhas e dos boletins financeiros. E várias são as consequências de uma política de juros alarmantes – e mais intensas conforme o prazo de duração dessa política.
A primeira consequência é fiscal: o Estado se compromete a pagar centenas de bilhões de reais em juros da dívida pública. Esse valor, que poderia financiar saúde, educação, ciência e infraestrutura, acaba transferido para a esfera de aplicadores financeiros. Tal arquitetura desfavorece vários objetivos legítimos do País e, com crédito caro e capital restrito, o empreendedorismo encolhe, o desemprego aumenta, a desigualdade socioeconômica se aprofunda.
A segunda consequência é diretamente de cunho social: os mais pobres pagam os juros mais altos no cartão de crédito, no cheque especial e em empréstimos pessoais. Isso cria mais um vetor de aprofundamento da desigualdade. Entrementes, aqueles com mais renda, por outro lado, beneficiam-se do rendimento acrescido de aplicações financeiras, ampliando seu patrimônio em silêncio, sem esforço produtivo. A lógica do sistema não é neutra e é profundamente injusta: alguns prosperam sem esforço produtivo, e outros – milhões de cidadãos trabalhadores – se afogam em dívidas.
A terceira consequência é política. Juros altos, mantidos por longo prazo, colocam governos legitimamente eleitos sob permanente vigilância e pressão. Medidas de austeridade, cortes e congelamentos de gastos tornam-se quase obrigatórias, sob os riscos de fuga de capitais e alta do dólar (esses riscos residem na pauta econômica e não devem, simplesmente, ser desconsiderados). Nesse contexto, a política monetária se transforma em instrumento de tutela econômica sobre a soberania política – um poder sem voto que condiciona a agenda de quem foi democraticamente eleito.
Além dessas três consequências, existem aspectos frequentemente ignorados e elencam-se aqui dois. O primeiro deles é que os cidadãos brasileiros são mantidos à margem da discussão. Os efeitos da Selic atingem a todos, mas a linguagem técnica afasta o cidadão comum, que não vê sua vida prosperar e não entende por quê. A taxa de juros impacta o dia a dia de milhões de brasileiros, mas o debate é conduzido como se fosse um assunto exclusivo de especialistas. As Atas do Banco Central não são comunicadas de forma clara e compreensível e os cidadãos permanecem alheios ao que realmente está em jogo.
Além disso, economistas e professores de Economia, independentes e sem influência institucional direta no Bacen, vêm alertando para os limites da atual metodologia de definição da taxa Selic, excessivamente dependente de expectativas do mercado financeiro – mais agentes deveriam participar das consultas, a seu ver – e de modelos que ignoram a complexidade social e produtiva do Brasil. Este é um argumento técnico que não merece ser desconsiderado.
Não, não se trata de negar nestas breves linhas a grande importância do controle da inflação ou da responsabilidade fiscal. Trata-se de reconhecer que juros altos não podem ser um projeto de longo prazo para uma economia de mercado e para um País com alto potencial produtivo, recursos naturais abundantes, uma sociedade criativa e milhões de pessoas fora do mercado de trabalho, ansiosas por renda e uma vida realmente digna. Direitos, aliás, previstos em nossa Carta Magna.
Pode-se – e deve-se – pensar em outras políticas para proteger o real da inflação, dentro dos marcos do nosso ordenamento jurídico. Uma delas seria a revisão das metas de inflação, com bandas de variação mais realistas e menos sensíveis a eventos externos transitórios. Outra seria a adoção de um regime de metas múltiplas, que considere não apenas a inflação, mas também indicadores de emprego, renda e inclusão social. Além disso, políticas públicas voltadas para o aumento da produtividade, a reindustrialização inteligente e a melhoria da infraestrutura são essenciais para atacar a inflação pela oferta – de forma estrutural, sustentável e includente.
As perguntas que restam são simples: qual desenvolvimento se pretende alcançar no Brasil – e qual será o tempo de espera? É bom para o País assegurar ganhos sem riscos a uma parte das pessoas físicas e jurídicas e, ao mesmo tempo, criar exclusão social para milhões de cidadãos, impedindo a criação de empregos e o resgate da dignidade produtiva? Por quanto tempo mais é possível que a engrenagem dos juros altos trave o futuro do Brasil?
Para um País continental e com muitas potencialidades, que pretende ser socialmente justo, economicamente dinâmico e politicamente soberano – um Brasil com efetiva dignidade humana, um dos princípios mais caros da nossa Constituição Federal –, juros altos a longo prazo ou eternos não são solução, mas evidência inequívoca de um modelo de política monetária – de política econômica mais ampla – que precisa mudar em profundidade, com visão moderna e solidária.
Mônica Mansur Brandão
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