sexta-feira, 11 de março de 2022

Governança corporativa: podem ocorrer sofismas nas decisões?


As discussões desenvolvidas no ambiente de governança corporativa estão sujeitas aos riscos de eventuais sofismas?

Considerações iniciais

Sofismas são raciocínios sem validade lógica que, todavia, são apresentados como argumentos lógicos e sólidos. As discussões realizadas no ambiente de governança corporativa estão sujeitas aos riscos de sofismas? Eles podem estar presentes nas decisões da cúpula organizacional?

O estudo da Hermenêutica e da argumentação jurídica permite identificar várias modalidades de sofismas aplicadas ao Direito, algumas das quais podem ser objeto de reflexão no que tange a decisões organizacionais. No artigo Argumentação jurídica: os melhores e os piores argumentos na retórica forense, o professor Alberto Marques dos Santos expõe, entre outros tópicos, bons e maus argumentos associados a questões jurídicas. Neste breve artigo, nos detemos nos piores argumentos da retórica forense, sem deixar de reconhecer que os sofismas podem existir em outros campos de conhecimento.

Categorias de sofismas

O quadro I apresenta um conjunto de 13 maus argumentos mencionados pelo professor Marques dos Santos no artigo citado:


Em linha com o quadro I, o quadro II apresenta exemplos de sofismas para as modalidades acima apresentadas, na seara jurídica:


Sofismas e decisões corporativas

Argumentos sofríveis podem criar riscos de decisões no ambiente de governança corporativa?

Se considerarmos a diversidade de organizações da economia e a assimetria de condições organizacionais, em tese, isso pode ocorrer.

Apresentamos aqui quatro exemplos fictícios, não exaustivos, de sofismas que, a nosso ver, poderiam ocorrer no contexto organizacional e no âmbito da cúpula de uma organização.

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Exemplo 1 - Petição de princípio
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Imagine-se, neste primeiro exemplo, que uma proposta de mudança nas práticas de marketing é apresentada à Alta Administração de uma empresa, para o qual seus defensores afirmam:

- Esta solução vem sendo empregada pelos melhores players do mercado.

- Temos que implantá-la; caso contrário, ficaremos fora do mercado.

- A concorrência não nos permite ficar para trás.

Note-se que os propositores buscam convencer os líderes adotando uma premissa fundamental: não se pode deixar de adotar a solução considerada. Será verdade? Pode ser que sim, mas pode ser que não.

Torna-se necessária uma análise robusta, considerando não apenas os custos e benefícios levantados, mas os desdobramentos práticos que a adoção da solução de marketing proposta criará. A organização está preparada para enfrentá-los? Quais riscos existem nas fases de implantação e operação da solução? Como eles serão tratados e a que custos? Em tempo, existem outras alternativas? É possível fazer comparação?

Importante: a proposição da solução poderia partir, em tese, não apenas de especialistas internos, mas da própria Alta Administração – de um de seus integrantes, por exemplo. E por ser egressa da Alta Administração, a proposta poderia até vir a ser adotada, por advir de alguém com poder na organização. Um processo realmente robusto de avaliação de projetos é importante filtro para identificar as ideias realmente boas.

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Exemplo 2 – Conclusão irrelevante
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Imagine-se que ativos físicos de uma empresa tenham sofrido um ataque, tendo sido subtraídos itens importantes e com alto custo de reposição. Aqueles responsáveis pelo real entendimento de como tudo ocorreu alegam à Alta Administração, em reunião destinada a discutir e aprovar medidas para evitar futuros eventos congêneres:

- A retirada de bens da empresa é inaceitável.

- Em função do ocorrido, os lucros serão menores neste ano.

- É preciso punir exemplarmente os culpados pelo ocorrido, em âmbito interno, para dar o exemplo, esta é a forma mais eficaz de prevenção.

Neste segundo exemplo, busca-se convencer quem decide de que a punição exemplar é aquela que tem maior eficácia para evitar eventos congêneres. Será isto verdade? A argumentação pode ser irrelevante. Identificar e penalizar, dentro das regras legais, eventuais responsáveis, ainda que necessário, pode não ter nada a ver com reduzir substancialmente riscos de novos ataques ao patrimônio organizacional, a depender do processo de gestão patrimonial considerado.

Diante dessa possibilidade, a análise do caso precisa ser robusta, e o processo que confere segurança aos ativos físicos da organização, minuciosamente repassado, com o apoio, se preciso de especialistas externos.

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Exemplo 3 – Generalização apressada
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Imagine-se que uma empresa tenha substancial experiência de implantar projetos de uma dada categoria. Um novo projeto da mesma categoria é apresentado para decisão, afirmando seus propositores:

- Este projeto não difere, fundamentalmente, daqueles que temos implantado e operado.

- Seus parâmetros técnico-econômicos estão dentro de nossos históricos de dados.

- Ainda que o projeto atravesse uma área de reserva ambiental, temos ampla experiência em lidar com entidades ambientais. A avaliação econômica já contempla os riscos de imprevistos.

Neste terceiro exemplo, os propositores do projeto mostram-se confortáveis em relação à sua implantação e execução. A decisão favorável ao projeto é realmente a melhor? Pode ser que sim, mas pode ser que não. Os requisitos ambientais formais e informais têm crescido com o passar do tempo e surpresas podem ocorrer nas fases de implantação e operação do projeto.

Nem sempre o passado repete o futuro. Existem mudanças institucionais em curso, as quais possam alterar os gastos com o projeto? Os propositores estão acompanhando com bom nível de atenção o que ocorre em âmbito institucional? As margens de segurança do projeto precisam ser consistentes com os riscos institucionais e socioambientais; o que nem sempre é fácil.

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Exemplo 4 – Argumento ad baculum
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Neste quarto e último exemplo, imagine-se uma negociação com o(s) sindicato(s) dos empregados, na qual os negociadores pelo lado patronal alegam, no início das negociações, orientados pelos líderes da organização:

- Se a proposta da Alta Administração não for aceita, haverá dispensas de pessoas.

- A conjuntura econômica não favorece a perda do emprego.

- A organização não terá dificuldades em repor seus quadros.

Pode ser que as condições financeiras organizacionais estejam frágeis; todavia, pode ser que não, e que uma contraproposta possa ser feita, de forma segura para as finanças organizacionais. Neste terceiro e último exemplo argumentos são propositalmente usados para deixar a contraparte insegura.

A ameaça anterior poderá repercutir no clima interno? Quais poderão ser as implicações possíveis dessa postura dos dirigentes organizacionais, os quais estabeleceram o tom a ser usado nas negociações com o(s) sindicato(s)? A prática de amedrontar pessoas tem fundamento ético? É consistente com o discurso dos líderes empresariais?

A curto prazo, talvez nada aconteça. No médio e longo prazos, o clima pode piorar e o desempenho cair. Talentos talvez sejam perdidos. Estas e outras possibilidades existem.

Uma reflexão final

Os quatro tipos de sofismas aqui apresentados podem ou não se apresentar no ambiente de governança corporativa entre outros. Ter consciência sobre sua existência, todavia, pode ajudar conselheiros de administração e diretorias executivas a refletirem sobre suas escolhas, ajudando-os a melhor apreciar argumentos quanto à validade e alternativas de decisão. A nosso ver, avaliar um projeto para o futuro inclui também avaliar a qualidade dos argumentos a favor e contra a proposta considerada.

Destaca-se a importância de processos decisórios robustos e suportados por boas ferramentas de apoio à tomada de decisão. A robustez de um processo – no sentido de sua eficácia – não implica sua burocratização excessiva, mas que existam filtros que possam ajudar a identificar argumentos lógicos realmente bons e a filtrar alternativas disponíveis.

Existem outros exemplos de sofismas possíveis no ambiente de governança corporativa? Convidamos os leitores a refletir sobre o assunto.

Mônica Mansur Brandão




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Comentários
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1) Os exemplos aqui apresentados não se baseiam em casos reais específicos, tendo sido construídos para ilustrar sofismas possíveis em decisões.

2) Chama-se a atenção, neste breve artigo, sobre a qualidade dos argumentos que chegam aos decisores. É recomendável que, pelo menos para os projetos mais importantes ou atípicos, diretorias e conselhos tenham critérios para avaliar, como parte da avaliação de projetos, argumentos a eles associados.

3) A avaliação supracitada seria complementar às avaliações de retorno econômico e de riscos, típicas de projetos,

4) Sofismas são apenas parte das possibilidades que se apresentam à construção de um modelo de avaliação de argumentos.

5) Independentemente das decisões, exercitar a identificação de sofismas no dia a dia é muito interessante para desenvolvimento do pensamento crítico. As situações em que eles são apresentados como argumentos válidos são várias.