sábado, 26 de agosto de 2023

Governança corporativa não blinda contra fraudes


As boas práticas de governança corporativa, os órgãos de controle interno e externo, assim como líderes organizacionais não devem ser automaticamente julgados e condenados, como se fossem, conforme o caso, falhos, negligentes, coniventes ou mesmo participantes, diante de fraudes e outras irregularidades ilegais. 

Antes de mais nada é preciso entender que: 

1) Precisa haver investigação séria sobre os fatos, para que se comece a formar uma primeira ideia do  que houve. Investigações realizadas por órgãos competentes são importantes como primeiros esclarecimentos.

2) Mesmo assim, conforme o caso, um processo judicial poderá levar a conclusões diferentes das investigações preliminares. Somente o devido processo legal aprofundará todos os argumentos, mediante provas, nos termos do Código de Processo Penal do país que se considera.

3) Saindo da esfera legal e adentrando a esfera dos processos e tecnologias organizacionais, é temerário afirmar que os sistemas de gestão e conformidade são perfeitos. Isto porque sistemas sempre podem ter imperfeições, não percebidas em sua concepção. E, ademais, existe uma parte importante nesses sistemas, a ser considerada: o humanware que os opera. 

4) Em suma, bons sistemas e práticas de governança corporativa baseadas nas melhores recomendações não asseguram o nível de "fraude zero". Ao menos, para o momento.

Implementar e aprimorar boas práticas de governança em empresas e demais organizações da economia é, obviamente, muito importante. A adoção de sólidos sistemas de governança corporativa ajuda a criar valor para as organizações que os adotam, reduzindo riscos e agregando retornos mais favoráveis e mais benefícios aos sócios e demais stakeholders, de todos os tamanhos. Tais práticas, aliás, defendem mais do que a conformidade com a legislação: postulam que se vá além da lei. Todavia, há limitações nos sistemas de governança e, por vezes, se tenta, erroneamente, atribuir a esses um papel que extrapola sua realidade, conferindo-lhes capacidade, que não existe, de evitar todas as fraudes e condutas ilegais ou reprováveis moralmente. 

Outra reflexão a ser feita é que se um agente interno consegue contornar os mecanismos de controle e supervisão existentes, isso não significa, necessariamente, que houve falhas nos princípios adotados em códigos de ética, nas políticas de conformidade ou na diligência dos esforços da administração. Sistemas de governança podem ser muito bons, segundo as melhores diretrizes e técnicas existentes em um dado momento, mas não são blindagens. Não têm a capacidade de prevenir, de maneira absoluta, em seu design, todas as fraudes que podem ocorrer, especialmente aquelas planejadas por pessoas que conhecem muito bem os mecanismos de controle existentes e podem criar formas de contornar barreiras de proteção.

Seguindo adiante no raciocínio, eis uma pergunta: se além da possibilidade de erros não previstos na concepção de sistemas de controle, existe ainda o elemento humano, o humanware que os opera, conforme dito, isso implica adotar uma postura de desconfiança forte e generalizada em relação a todos na organização? A nosso ver, não, não existe uma justificativa lógica para essa postura quanto à idoneidade das pessoas. Aliás, se a governança corporativa requer boas práticas e bons controles, requer também boa dose de confiança em seres humanos; se assim não fosse, como existiriam as organizações de todos os tipos? Como existiria a delegação? Em inúmeras situações, é preciso confiar, simples assim. 

Organizações exigem um mix de confiança no ser humano e controle de parte dos atos do ser humano (especialmente considerando-se as decisões que sejam críticas para a organização). Humanos são imperfeitos. Mesmo o empreendedor único de um negócio (que pode, em uma primeira fase, ser informal) necessita ter seus próprios controles. Ainda que este empreendedor confie profundamente em si, ele não consegue prever todos os eventos possíveis, tudo o que pode acontecer e todas as suas próprias reações. E ele pode se esquecer de detalhes importantes do seu negócio, ou ser prejudicado por terceiros, se não tiver controles mínimos do que foi combinado ou contratado. 

Finalizando, como devem ser tratadas as situações em que ocorreram fraudes? Com ou sem falha de governança, com o tratamento clássico que deve ser dado nas situações em que existem malfeitos: a lei, ou melhor, a força da lei, que deve ter boas regras. Com uma legislação efetiva que proteja as organizações e os públicos que dependem da lisura de sua atuação. O ordenamento jurídico e sua eficácia são fundamentais barreiras de contenção e punição de comportamentos ilegais. Alguns desses comportamentos têm sido, ao redor do Planeta, substancialmente lesivos a várias sociedades.  


Mônica Mansur Brandão

A versão em inglês deste artigo pode ser vista no nosso Governance Room.