Toda sociedade empresarial nasce de expectativas compartilhadas: alinhamento de propósitos, construção de um negócio próspero, crescimento conjunto e muito mais. No entanto, quando a confiança entre sócios é rompida, esse alicerce invisível se desmancha, o que revela uma estrutura frágil, permeada por litígios, perdas e ressentimentos.
Um caso recente julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP) lança luz sobre essa temática.
Em uma decisão proferida pela 1ª Vara Empresarial e Conflitos de Arbitragem de São Paulo, a juíza Larissa Gaspar Tunala declarou nula a alteração contratual de uma sociedade de advogados, após a comprovação de que a assinatura de um dos sócios havia sido falsificada para efetuar sua exclusão do contrato social.
A manobra, segundo os autos, foi feita enquanto o sócio estava em viagem, utilizando-se o mesmo endereço IP e e-mail vinculados ao réu; evidências que, somadas, teriam demonstrado fraude documental.
Além da exclusão indevida, o sócio fraudador teria encerrado a conta bancária da sociedade e se apropriado de valores que pertenciam ao coletivo societário. A Justiça determinou a reparação por danos morais (R$ 5 mil), a nulidade da alteração e a reversão das anotações junto à OAB/SP.
O presente caso, que pode ter recursos judiciais e, portanto, ainda não chegou ao fim - ao chamado trânsito em julgado - ajuda a refletir sobre a confiança como um pré-requisito indispensável em um arranjo societário.
A confiança como patrimônio imaterial de uma sociedade
Mais do que cláusulas contratuais, capital social e objetivos em comum, é a confiança que permite que os sócios dividam responsabilidades, compartilhem senhas, contas bancárias, estratégias e decisões críticas. Quando ela é esgarçada, os registros passam a ser questionados, as intenções deixam de ser presumidas como honestas e o foco, antes voltado para o crescimento, passa a ser desviado para a desconfiança e a incerteza.
A confiança, portanto, a nosso ver, é o ativo mais valioso e vulnerável de uma sociedade de negócios. Não é registrada em balanço contábil, mas sua ausência é rapidamente sentida em crises, investigações, prejuízos e dissoluções societárias.
Do ponto de vista jurídico, a quebra de confiança entre sócios pode ensejar:
a) Ações de responsabilidade civil, como no caso julgado, em que se vê indenização por danos morais e materiais;
b) Anulação de atos societários, quando praticados com vício de consentimento ou fraude;
c) Dissolução parcial ou total da sociedade, caso fique inviável a manutenção da affectio societatis, ou seja, o vínculo de colaboração recíproca que justifica a própria existência da sociedade; e,
d) Sanções éticas e disciplinares, no caso de sociedades profissionais como as de médicos, advogados e outras, cujas normas éticas exigem ainda mais lealdade.
Como se percebe, se a confiança entre os sócios é um alicerce invisível, as consequências da perda de confiança podem ser muito visíveis e impactantes nas vidas dos envolvidos e de suas famílias.
É possível blindar a sociedade contra quebras de confiança?
Embora não seja possível eliminar completamente os riscos, existem mecanismos jurídicos e administrativos que ajudam a prevenir ou, ao menos, mitigar os impactos de eventual quebra de confiança, tais como:
1. Governança societária - a coordenação entre sócios
O que aqui designamos como governança societária cuida do relacionamento jurídico e estratégico entre os sócios.
Um bom acordo de sócios é o principal instrumento dessa governança: antecipa conflitos, define regras claras de entrada e saída, penalidades por condutas lesivas e mecanismos eficientes de solução de controvérsias. Deve conter cláusulas sobre (não exaurientes):
- Alienação de quotas;
- Exclusão de sócios por justa causa;
- Valoração da empresa em caso de saída;
- Confidencialidade; e,
- Não concorrência.
Também pode-se prever regras sobre sucessão, voto qualificado e fórmulas para precificação em casos de dissolução parcial.
2. Governança corporativa / empresarial / organizacional - a coordenação organizacional pelo topo
Mesmo em empresas de pequeno porte, boas práticas de governança corporativa fortalecem a previsibilidade, a transparência e a sustentabilidade do negócio. Isso inclui:
- Organização de conselhos;
- Organização de diretorias executivas;
- Processos de trabalho bem estruturados;
- Registro formal das deliberações;
- Prestação de contas periódica;
- Comunicação clara e tempestiva;
- Regras de compliance e controles internos;
- Responsabilidade dos administradores.
Esses e outros mecanismos não substituem o pacto societário. Juntos, ambos criam um ecossistema de confiança entre sócios, gestores e stakeholders externos.
3. Gestão profissionalizada e separação entre sócio e gestor
Nem sempre o sócio precisa ser o administrador da empresa. Ao profissionalizar a gestão, evita-se a personalização excessiva das decisões, reduz-se o risco de conflitos de interesse e se criam mecanismos mais objetivos de controle. Entre os conflitos mencionados, destacamos o chamado conflito de agência, isto é, entre quem representa os interesses de uma pessoa natural ou jurídica e a pessoa representada.
Adicionalmente, é possível prever conselhos administrativos, consultivos, fiscais, auditorias internas, políticas de dupla aprovação e regras de acesso às finanças empresariais. Tal modelo favorece a imparcialidade nas decisões e fortalece o compromisso institucional acima das vontades individuais.
Importante:
Note-se que aqui separarmos as ideias de governança societária e governança corporativa / empresarial / organizacional (sendo o primeiro termo mais aplicado a organizações de maior porte), pois, a nosso ver, tratam-se de coordenações de ambientes distintos, ainda que ambas as modalidades de governança estejam umbilicalmente relacionadas. Aliás, neste EG, temos tratado a palavra governança com distintos enfoques, que podem ser vistos em academias de ensino e na prática.
A confiança entre sócios não é um luxo nem um diferencial competitivo: é uma condição de existência da sociedade. No caso concreto apresentado, a confiança entre os sócios terá se quebrado de modo irremediável, independentemente do trânsito em julgado. E antes mesmo da ação judicial.
Sem a confiança, os contratos tornam-se letras mortas, e os números, passíveis de alta desconfiança. O caso da falsificação de assinatura para exclusão societária aqui apresentado, independentemente de sua finalização no âmbito do Poder Judiciário, é um alerta: genericamente falando, quando um sócio trai a confiança, não apenas viola um contrato, mas pode destruir a base sobre a qual o negócio se sustenta.
Em tempos de tantas incertezas no ambiente de negócios, proteger a confiança é tão estratégico quanto proteger a propriedade intelectual ou a saúde financeira do negócio. Afinal, nenhum contrato valerá muito se ele não for realmente honrado.
Mônica Mansur Brandão
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